domingo, 3 de abril de 2011

Origens das Lenda Brasileiras

BRASIL CULTURA

O cenário lembra as savanas africanas. O calor é tórrido, e a falta de chuvas do verão amazônico secou áreas sempre inundadas e esvaziou lagos e igarapés, berços da diversidade de Marajó, a maior ilha fluviomarinha do mundo. A aridez, contudo, facilita o trabalho da arqueóloga Denise Pahl Schaan, que desta vez inspeciona um sítio na região da vila de Santa Cruz. O trabalho segue sem surpresas até que um dos rapazes da equipe localiza uma lâmina de machado com suas aletas ainda intactas.

O rosto de Denise, empapado de suor sob o chapéu de abas largas, exulta.

Pesquisadora do museu paraense Emilio Goeldi e da Universidade Federal do Pará, Denise há mais de dez anos investiga a cultura marajoara, resquícios de uma nação que habitou a ilha entre os anos 450 e 1350, e de outros povos ancestrais da região.

Acostumada com as dificuldades da prospecção, é mulher que não se entusiasma fácil. Mas agora tem motivos: o material do qual é feito o machadinho, uma pedra de basalto, não existe em Marajó. Isso ajuda a comprovar a tese, sugerida já na década de 1950 pelo americano Donald Lathrap, do intercâmbio cultural e comercial entre os povos da Amazônia pré-colombiana – caso dos influentes tapajônicos, que viviam mais distantes, no interior. “Como não existem na ilha vestígios desse tipo de rocha, parece improvável que os marajoaras a tenham trazido de fora para fabricar o machadinho. O objeto é um sinal claro de que havia trocas entre os povos”, avalia.
Quando os navegadores espanhóis penetraram no Amazonas, em meados do século 16, eles já observaram tribos populosas ao longo do vasto rio.

Os portugueses vieram depois, e uma descrição mais acurada sobre povos da ilha de Marajó só veio no século 17, em relatos do padre Antônio Vieira. Segundo os estudiosos, sua sociedade complexa – com divisão de trabalho, hierarquia e noção de Estado – poderia ser comparada à dos incas.

Um dos principais sinais de sua passagem são os chamados “tesos”, espécie de colinas artificiais que chegavam a ter até 12 metros de altura e podiam ostentar grandes casas coletivas, cada qual com capacidade para abrigar 20 ou 30 famílias. Os tesos tinham também a função de proteger os moradores contra a água, pois o interior da ilha fica alagado boa parte do ano. Assim como os atuais ribeirinhos, os marajoaras represavam igarapés para criar lagos. Com redes e armadilhas de fibras ou madeira, pescavam e secavam os peixes ao Sol, garantindo comida ao longo de todo o ano. Em suas canoas, viajavam para se relacionar com outros povos e fazer trocas – por exemplo, de vasilhas, tecidos e cestaria por mandioca processada e objetos líticos. E nos rios e lagos buscavam a argila para produzir uma das mais sofisticadas cerâmicas arqueológicas conhecidas em todo o mundo.

A cerâmica marajoara, a exemplo de qualquer outra autêntica forma de arte, perpetuou-se. Ao redor das vilas, na beira da água e em tesos ocultos na mata, fragmentos ou artefatos inteiros estão à espera de ser localizados. Na vila Tessalônica, município de Afuá, encontrar um tesouro arqueológico é questão de tempo: o povoado está assentado sobre um antigo espaço de rituais. Pela manhã, quando as águas do rio baixam, as crianças retiram das margens cacos de peças há séculos soterradas. “Quarenta anos atrás, quando me mudei para cá, havia ainda mais vasilhas inteiras. Muita coisa se perdeu”, diz Joaquim Ferreira, 67 anos, o mais antigo morador do lugar.

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